domingo, 29 de março de 2009

FUTURO DO PRETÉRITO (ficção evolucionista)

© Alistair Cotton | Dreamstime.com

Madrugada, voltando de um povoado, solitário no banco traseiro do táxi, o padre reza buscando o estado meditativo que lhe esvaziaria a mente, mas seus tormentos resistem à monotonia das ave-marias. Procura distrair-se lendo um romance e não consegue, aproveita o e-reader ligado para folhear revistas eletrônicas. Ao se deparar com um anúncio de livros impressos em papel, indaga-se: “Que excêntrico compraria tais raridades?” Surge um aviso de vídeochamada na tela. Não atende. Era ela. Continua percorrendo publicações a esmo até que uma ilustração para o artigo Darwinian Legacy to Psychology desperta seu interesse. Gosta do que lê. Percebe que o nome do autor é sensível a comando de voz e chama por ele. Aparece um sujeito de meia-idade que, em inglês, fala de si e de sua motivação para escrever, apenas o suficiente para confirmar a boa impressão deixada pelo artigo.
Para surpresa do padre, o consultório do articulista, que podia ser em qualquer lugar do mundo, é próximo de sua casa.

— O que o trouxe a mim? — pergunta o terapeuta, após cumprimentos e apresentações.
― Posso fazer algumas considerações preliminares?
— Esteja à vontade.
― Não conheci meu pai. Ainda menino entrei para o seminário porque foi o modo que minha mãe encontrou para eu estudar. Fiz doutorado na Universidade do Vaticano, seguindo aulas por teleconferência e consultando remotamente documentos digitalizados. Como de praxe, poderia ter elaborado e defendido minha tese à distância, mas fui agraciado com uma permissão papal para fazê-lo in loco, o que me possibilitou conhecer o Vaticano, Roma e a Europa toda. Devo tudo que sou à Igreja. Ela me deu cultura e me dá casa, comida, roupa lavada e projeção social. Em retribuição, enfrento suas dificuldades com entusiasmo. E não são poucas: nas últimas décadas o catolicismo perdeu quase cinqüenta por cento dos fiéis, principalmente para as novas denominações evangélicas e para o agnosticismo. Minguam as vocações sacerdotais, somos apenas três padres para a paróquia de Porto Seguro, que atualmente compreende toda a região: Cabrália, Arraial, Trancoso, etc. Eu me desdobro.
― Meu drama começou quando, depois de celebrar missa em um povoado, fui supervisionar uma preparação para Primeira Comunhão Eucarística. Como sempre, sentei-me no fundo da sala observando o trabalho do catequista. Era uma mocinha, parecia ter uns 16 anos, mas, depois, soube ter 19. Totalmente dedicada às crianças, agia como se ignorasse a minha presença, o que me deixou à vontade para admirá-la. Finalmente, seus olhos, duas turquesas, encontraram os meus. Na reunião de orientação que tivemos a seguir, observei-a melhor: era meiga, atenta, encantadora.
― A partir desse dia, retornei a qualquer pretexto. Nossas reuniões foram se tornando mais íntimas, ficávamos a sós numa saleta, sem mesa a nos separar, os joelhos quase se tocando e, depois de tratar de um ou outro assunto eclesiástico, nos alongávamos: ela fazia confidências e ouvia meus conselhos. Era delicioso. Eu pressentia o perigo, mas convencia-me de que tinha pleno domínio da situação. Um dia ela chegou visivelmente nervosa parecendo sem coragem para confessar um pecado. Precisei usar de toda minha experiência para fazê-la falar, quando o fez, contou estar apaixonada. Disse que ao vê-lo ficava tão alegre que tinha que se conter para não sair cantarolando; arrepiava-se com qualquer contato corporal, por mais ínfimo que fosse; pensava nele o dia todo e, à noite, faziam amor, em sonhos. Imaginei que falasse de mim, desejoso, até que num ímpeto ela se atirou em meu colo e me cobriu de beijos.
― O que veio depois você bem pode imaginar. Não devia ter me envolvido dessa maneira, Maria era virgem, agora está grávida. Na semana passada, inacreditavelmente, insisti para que fizesse um aborto. Fiquei atormentado. Estou atormentado.
— Devo lhe confessar que não era casto quando a conheci. Dou palestras e participo de simpósios por toda parte. Penso que a posição de destaque que normalmente me reservam, aliada a condição de “fruto proibido”, desperta a cobiça feminina. Na primeira vez que me deitei com uma mulher acordei abatido, sentindo-me imundo, indigno de voltar a celebrar missa. Com o tempo, a sensação passou, tive novos casos, outros religiosos tinham os seus.
— Mas desta vez não é apenas sexo casual: eu me envolvi, gerei um filho e, pior, tentei me livrar dele. Um leigo não avalia o significado da paternidade para um padre, ser partícipe no milagre da renovação da vida. Custo a crer que eu, fã confesso de Eça de Queirós, esteja revivendo a história do Padre Amaro quase dois séculos depois.
— O progresso mundial é vertiginoso porque se beneficia da transmissão de conhecimentos adquiridos — Aparteou o terapeuta. ― Mas o emocional humano desenvolve-se no ritmo lento da evolução das espécies. Enquanto a Igreja Católica exigir castidade, haverá padres Amaros.
— É compreensível que esteja atormentado. O prazer e a felicidade são incentivos naturais para geração e criação de filhos. Como regra geral, o que favorece a continuidade da espécie humana produz bem-estar e o que é contra, como o celibato e o aborto, causa angústia e depressão.
— Você sabe que está diante de duas possibilidades, sobre as quais, se me permitir, farei algumas considerações.
O padre assentiu com um leve movimento de cabeça e o psicólogo continuou:
― Para manter sua posição na Igreja, você pode optar pelo aborto e arcar com a dor moral resultante. Não será difícil fazê-la abortar, o fato de ser homem, mais velho e gozar de posição social privilegiada torna sua determinação quase irresistível para uma jovem como a Maria. A alternativa é abandonar a Igreja e se casar. Você vai perder status social, o que é negativo para sua felicidade, e ganhar uma família, o que é altamente positivo por uma simples razão evolutiva: nada melhor do que a família para criar filhos e preservar a espécie. No cômputo geral, acredito que a opção de se casar o fará mais feliz. Bem, restaria uma hipótese que não me parece factível nos dias de hoje: manter mãe e filho em segredo, escondidos de seu mundo, como faziam os antigos coronéis.

No dia seguinte o padre acorda às 5 horas da manhã, toma um banho frio, veste roupa caseira, pega o terço, ajoelha-se em uma almofada sobre o chão e pousa os cotovelos na cama distribuindo seu peso até ficar confortável e equilibrado. Reza silente, nada quer e nada pede, simplesmente repete as orações em monótona sucessão. O ritmo da respiração e o batimento cardíaco diminuem enquanto a mente se esvazia. O terço termina. Seu corpo permanece relaxado, imóvel, e a cabeça leve, o que não significa ausência de pensamentos, eles apenas nascem e passam suavemente, sem insistência dramática. Recordações normalmente perturbadoras desfilam docemente: dias de fome, de frio; a bicicleta de segunda mão que a mãe lhe deu; o primeiro beijo; estripulias no seminário, os castigos; as principais vitórias, o colega que salvou do afogamento, o doutorado obtido com louvor. Lembra-se dos dramas que ouviu em confissão e dos sacramentos que ministrou, principalmente de casamentos e batizados. O sentido deles conduz sua mente à intuição de Santo Agostinho: “ama et fact ut vis” — ama e faze como queres, ama e vai em frente ― reafirmando prerrogativa inalienável do amor a Deus e entre filhos de Deus. O padre sai do estado meditativo sereno, confiante de que sente por Maria o verdadeiro amor a que Agostinho se referiu.
Enquanto se troca para sair, pensa com entusiasmo: “Agora tenho muito que fazer, inclusive, comprar um par de alianças.”

― 038 ―

terça-feira, 24 de março de 2009

ORGÂNICO OU NÃO, COMA O QUE É BOM

Artigo* publicado anteontem no New York Times alerta-nos de que a comida orgânica virou sinônimo de saudável, tem angariado uma multidão de fãs, mas o que realmente importa continua sendo nos alimentarmos bem. Marion Nestle, professora da Universidade de Nova York, afirma que “organic junk food is still junk food” que poderíamos traduzir livremente por “porcaria orgânica ainda é porcaria”. O que ela quer dizer é que um hambúrguer orgânico de pão feito com trigo plantado sem fertilizantes químicos e boi criado sem tomar hormônios engorda e entope as artérias de colesterol tanto quanto um hambúrguer comum. Pior, como já relatei anteriormente, o fato de estar comendo algo que acreditamos ser supersaudável pode nos levar a, inconscientemente, exorbitar na quantidade (lembre-se de que o auto-engano é um mecanismo de preservação da espécie eficiente para iludir nossa prudência perante ofertas alimentares e sexuais).

(*) Para ler a íntegra do artigo Eating Food That´s Better for You, Organic or Not acesse http://www.nytimes.com/2009/03/22/weekinreview/22bittman.html?ref=nutrition

― 037 ―

terça-feira, 17 de março de 2009

TECLE 100 PARA DENUNCIAR ABUSO SEXUAL

© Stockphotonyc Dreamstime.com

Na manhã do último domingo fui com meu filho de 10 anos assistir a uma partida de tênis entre os ex-campeões John McEnroe e Jim Courier e desliguei o celular conforme solicitado. No caminho de volta para casa, o garoto pôs-se a brincar de implicar comigo. Ao pararmos no próximo sinal de trânsito, revidei fazendo cócegas nele, que reagiu: “Pára pai, senão eu abro a janela e grito: Assédio Sexual”. Adverti-o de que este era um assunto sério demais para se brincar e pedi que telefonasse para a mãe avisando que estávamos a caminho. Em seguida, assustado, contou ter ouvido uma mensagem no celular dizendo para denunciar abuso sexual. Que estranho!

Mistério solucionado: ao ligar o telefone, ele viu o aviso de que deveria teclar *100 para ouvir uma mensagem, provavelmente da mãe que nos esperava para o almoço. Mas esquecendo-se do * ligou apenas 100, que, então descobrimos, é o número do telefone para denunciar abusos sexuais.

― 036 ―

quarta-feira, 11 de março de 2009

RONALDO FENÔMENO

Domingo passado, o carismático jogador entrou em campo pela segunda vez depois de mais de um ano sem jogar se recuperando de uma delicada operação no joelho. Ficou pouco tempo em campo, mas foi suficiente para mostrar sua categoria: um chute de fora da área no travessão, um passe perfeito e, finalmente, um gol de cabeça. No dia seguinte, disse em um programa de tevê que estava três quilos acima do peso ideal. Um músico presente comentou que era fácil perder três quilos. Talvez para um gordinho qualquer, mas não para o Ronaldo!

O gordinho vai para um Spa, é submetido a uma dieta de pouco sal e seu corpo se desidrata (água pesa, é fácil de perder, e o Spa sabe disso). Depois, ao se exercitar, seu organismo compensa a pouca alimentação que recebe consumindo gorduras e músculos para gerar energia. Quanto mais fora de forma ele estiver e mais intensamente se exercitar, mais músculos e menos gordura perderá, porque músculos são mais facilmente metabolizados com pouca oxigenação (é o déficit de oxigênio que faz ofegar quem não está em forma). Uma semana depois, o gordinho sai do Spa pensando que emagreceu três quilos como mostra a balança. Na realidade, perdeu apenas uns 200 gramas de gordura; mais um pouco em músculos e a maior parte em água que voltarão assim que ele recuperar seu tônus muscular e hidratação. Quando o Ronaldo Fenômeno diz que precisa perder três quilos, são três quilos de gordura, só gordura, pois um atleta profissional não pode ficar desidratado, nem perder musculatura. Mas vamos supor que o gordinho faça tudo correto, mantenha-se hidratado, faça dieta e exercícios leves, muita quantidade com pouca intensidade (para não sofrer déficit de oxigênio), e consiga perder 3 quilos exclusivamente de gordura. Ainda assim, são casos muito diferentes. Um gordinho de 100 kg e 30% de gordura corporal tem 30 kg de gordura, se perder apenas 10%, emagrece os 3 kg desejados. O Ronaldo, conforme revelou na entrevista, está com 10% de gordura corporal e pesa menos de 100 kg, mas supondo-se que pesasse 100 kg, para facilitar a comparação, teria 10 kg de gordura e precisaria perder 30%, uma enormidade, para emagrecer os mesmos 3 kg.

― 035 ―

segunda-feira, 9 de março de 2009

ESTUPRO DE CRIANÇAS É DRAMA DIÁRIO*

A reportagem ― motivada pelo caso dramático de uma criança de 9 anos que, estuprada pelo padrasto, engravidou de gêmeos e foi submetida a um aborto legal ― relata que por ano no Brasil ocorrem cerca de 150 mil casos de abuso sexual doméstico (quando a violência é praticada por pessoas íntimas da vítima). O problema é complexo, admitindo várias abordagens, mas acredito que o número de vítimas cairia drasticamente se a população tivesse uma visão mais realista da natureza humana.

A idéia geral que se tem do estuprador de uma criança indefesa é a de que ele é um psicopata, um monstro. Não necessariamente. Enquanto as mães acreditarem que somente facínoras serão capazes de molestar suas filhas, como enxergar risco no convívio delas com o próprio marido, um tio ou amigo, homens com família, trabalho, etc? O estupro e a pedofilia com crianças já em idade fértil são instintos masculinos naturais. O fato de serem repudiados pela civilização não significa que, por força de lei, tenham sido erradicados do genoma humano. A verdade que a sociedade hesita admitir é que as jovenzinhas e o estupro também são excitantes para o homem socialmente produtivo, dito normal. Se parássemos de nos enxergar como o que gostaríamos de ser e aceitássemos melhor o que somos, naturalmente bem mais próximos do animal que do sublime, as mães seriam mais atentas aos mínimos sinais de erotização entre suas filhas pequenas e os adultos que as cercam, principalmente se estes consumirem drogas como o álcool que diminuem o autocontrole.

A explicação científica para comportamentos hediondos deve ser usada para nortear ações preventivas e, de forma alguma, para justificá-los ou abrandar suas penas; o respeito aos direitos humanos é um bem valioso demais para ser negligenciado.

(*) Manchete de 1ª página do jornal O Globo de hoje.

― 034 ―

sexta-feira, 6 de março de 2009

A IDÉIA BÁSICA DE DARWIN E O QUE HOJE SE PESQUISA

Vamos relembrar a idéia básica da teoria da evolução. O DNA de uma célula embrionária é copia do DNA dos pais, 50% de cada. Se a cópia fosse sempre perfeita, não haveria evolução das espécies, pois nunca apareceriam novos genes. É preciso haver um erro no processo de cópia para surgir um gene inédito que poderá ser inoperante, acarretar uma má-formação fatal ao embrião ou ser funcional. Neste caso, quanto mais adequada à reprodução for sua função, mais chances terá o hospedeiro de gerar descendentes e passar esse gene adiante. Em contrapartida, genes que expressam atributos desfavoráveis à procriação desaparecem com a morte dos seres que não se reproduzem.

Esse processo que faz os genes mais favoráveis à reprodução se proliferarem, e não os menos favoráveis chama-se Seleção Natural e funciona para todas as espécies desde o surgimento da vida na Terra. É ele que nos assegura que todas as características de quaisquer espécies foram selecionadas exclusivamente por sua eficiência reprodutiva. Até a sobrevivência não é um fim em si, é apenas uma pré-requisito à reprodução, caso contrário, mães não arriscariam suas próprias vidas para salvar a dos filhos, como acontece em situações extremas.

O que Darwin apenas indicou, mas que agora esta sendo pesquisado e comprovado é que o aparato reprodutivo humano construído geneticamente pela Seleção Natural não se limita ao corpo e sua funcionalidade, inclui emoções, sentimentos, bem como nossa moral e ética. O que mostro no livro “Dá trabalho ser feliz”, e, aos poucos, também neste blog, é que a compreensão do evolucionismo ajuda a simplificar nosso cotidiano, torna mais fácil fazer dieta, exercícios, trabalhar, combater o estresse, namorar e até a constituir uma família mais feliz.

― 033 ―